Aída e Eículo Ongo

   Anunciaram três vezes no vilarejo que o senhor e a senhora Ongo tinham finalmente esvaziado o casarão e partido para não mais voltarem. Sua estadia perdurou pelo tempo suficiente para que a vida passasse por vários níveis de condição e que uma inquietação já madura e não mais suportável arrancasse-os pela raiz e sacudisse-los os ânimos, a ponto de que depois da decisão final, apenas dez dias se passaram até que finalmente partiram. Foi esse um tempo memorável dos habitantes do povoado, e não por surpresa, pois não havia dúvida de que o Sr. Eículo e a Sra. Aída eram os tipos mais curiosos que apareceram pela região em muito tempo.
   Especial encanto invocava na gente do povoado o casarão onde viveu o casal desde que chegaram ali, num verão antigo, em que uma seca forte afugentou o casal de seu antigo lar. Sua construção foi rápida e silenciosa, dois dias depois do casal chegaram meia dúzia de pessoas igualmente estranhas e de aparência vulgar. Em uma semana levantaram e finalizaram as paredes geométricas e improváveis que abrigavam os Ongo. Durante a construção a população estranhou que nenhuma carroça tinha chegado da cidade trazendo tijolos e que não usaram o adobe que o Sr. Mariano fabricava, o único que sabia fazer uma fórmula boa o suficiente para que as casas aguentassem o verão chuvoso da região. As janelas não eram retangulares e o vidro de que eram feitas parecia ter cor e curvas.
   Dessa época o alfaiate, Carlos Magno, contou história por muito tempo, da oportunidade em que hospedou Aída e Eículo antes que a casa ficasse pronta. Notou desde o começo a peculiaridade dos novos moradores, mas reconheceu de cara o caráter e a boa conduta dos dois apesar da aparência estranha e as maneiras incomuns. De fato, Carlos Magno colocou-os em alto estima desde o primeiro almoço em que estiveram juntos, quando Eículo tirou de sua bolsa as duas garrafas de vinho mais saborosas e embriagantes que desfilaram por debaixo de seus bigodes experientes e gulosos.
   Entre as peças que desfilaram na rua nesses dez dias nas mãos de conhecidos estavam fantoches de pano em cores fumegantes e em formatos de seres fantásticos, uma moldura vazia entalhada num maciço de bronze em que uma serpente se enrolava em braços humanos, uns de mãos dadas aos outros, e três peças de porcelana pintadas que se encaixavam e formavam um cachimbo de um metro de longitude. Mas a peça mais curiosa ficou com dona Martinez, a senhora que ficou encarregada do jardim dos Ongo por quinze anos. A preciosidade era uma escultura de uma mulher que olhava para o alto e que era maleável, feita inteiramente de prata, com exceção aos olhos, que eram gemas cuidadosamente lapidadas, e que davam ao rosto da escultura a aparência bizarra e grotesca que Aída tanto se incomodava nos dias em que estava mais sensível. Na parte dos ombros os braços transladavam entre duas posições: em uma delas as mãos deitavam-se sobre o rosto, tampando assim os olhos loucos, e na outra os braços baixavam até o tronco, deixando as mãos numa posição tal que segurava o ventre. Eículo descreveu minunciosamente a maneira que a escultura deveria ser exposta: primeiramente, a peça deveria ser colocada virada para o norte na primeira lua nova depois do solstício do inverno com as mãos sobre o ventre, e a cada dia que o braços fossem levantados de pouco a pouco, de forma que na lua cheia as mãos cobrissem os olhos.
   Aída disse a Martinez anos depois em uma carta que a escultura fora um presente de um judeu que encontraram em Quito, depois de uma noite de rituais inconcebíveis numa sinagoga em ruínas. Segundo o judeu a escultura era parte da herança de seu pai, um negociante de prata que enriqueceu na base do contrabando de peças que vinham da Bolívia.
   Martinez seguiu com rigor as recomendações de Eículo, embora na primeira lua cheia as mãos estivessem ligeiramente deslocadas dos olhos da imagem. E foram muitos ciclos que passaram antes que a mulher de prata finalmente tampasse os olhos no dia de lua cheia.
   Havia já dois meses que o casal estava fora do vilarejo e tudo parecia do normal e do ordinário. O seu Tomás, ferreiro do sítio, sentia falta das encomendas estranhas do casarão, e a dona Lívia, tão pobre, vendia agora metade das tortas que antes vendia.
  Ao carteiro chegou a mensagem que Eículo e Aída estavam já em outro continente, e mais nenhum reclame se ouviu no vilarejo, fosse por medo de pecado ou maldição.
   E enquanto vivia o povo no vilarejo a rotina dos dias, a que dava sentido ao despertar e ao adormecer, Aída e Eículo Ongo viviam passos que nunca seriam revividos num ritmo destemido e inesperado, ora cambaleante, ora inesquecível. Estre passos que deram passaram por cima de montanhas e também por baixo delas, chegaram a viver num lago e por vezes foram ao céu. O primeiro desencontro não tardou a vir. Sob muitas escolhas as mentes patinaram e chocaram-se. Ora, não nega-se que houvessem confrontos, mas souberam fazer daquelas cicatrizes pontes para outros horizontes e o pouco de dúvida que restou deliciosamente se transformou no prazer do inesperado.
   Nas orelhas Aída carregava porcelana valiosa, que contava séculos de história e pedaços do futuro. Mesmo assim obstinava-se ao uso de chapéus, aos quais atribuía má fortuna e tragédia. Por seu lado Eículo dedicava horas de seu tempo na construção de um tratado matemático que elucidava a geometria dos chacras.
   Assim caminhavam Aída e Eículo Ongo, um com assombro do passado e outro com esperança do futuro, buscando no nunca uma brecha do destino no qual a vida fosse farta e fácil, livre do pesar e do real e cientes do fardo da mudança, ambos caminhando na trilha do imprevisível.

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