Ramón Ramirez

-Quem é Ramón Ramirez?
-Ramón Ramirez é um personagem de um sonho de Mikola Blokhin, um jogador de xadrez ucrâniano que vive na Romênia.
-E Mikola Blokhin sabe disso?
-Claro que não.
-E quando Mikola sonhou com Ramón Ramirez?
-No tempo do sonho ou no tempo de Mikola?
-No tempo do sonho.- disse coçando a cabeça, estava devagar e com as ideias vacilando.
A mulher então respondeu como quem encara uma criança chata:
-Não existe tempo do sonho.
-Ah... concordou sem muito entender.
-No tempo de Mikola foi numa tarde depois do almoço, quando dormiu de perna pra cima pensando na janta e na história das roupas.
Estava ainda roendo o tempo do sonho."É claro que existe. Senão sonharíamos como em foto, parados."
-O que existe é a consciência do tempo no sonho. - Uma menina a sua frente lhe falou, segurando uma borboleta na mão e vestindo um vestido vermelho.
A mulher que ali estava sumira. Perguntou para a menina:
-Então talvez você me explique melhor quem é Ramón Ramirez!
-Ele é meu filho.
-Mas você é tão nova!
-Não sou não. Tenho quatrocentos e treze anos, nasci na noite em que Johannes Kepler dormiu cedo porque estava nublado em Praga.
-Ah sim. Já tinha se perdido quando a menina saiu correndo atrás da borboleta que voara.
Foi andar um pouco para se refrescar, à sua frente um grande lago refletia um mosaico de nuvens e de longe se via uma grande estátua em bronze de um homem nu olhando para cima, ao pé da estátua as inscrições douradas: RAMÓN RAMIREZ. Andou um pouco ao redor da estátua e depois foi procurar um banco para sentar quando encontrou com uma mulher catando jabuticaba numa pequena árvore. Estava triste e quis puxar assunto, e perguntou displicentemente:
-Quem é Ramón Ramirez?

Fedor



Valentim acordou suado, mas tava frio, mesmo com o Sol aparecendo depois de algumas semanas. Tinha que ir trabalhar, o suor devia ser já a premonição do corpo ao sofrimento da rotina que chegava de novo depois de um delírio tão agradável no sono. Tinha sonhado que tava fumando haxixe na escola em que estudou quando era adolescente. Acordou no meio da discussão com o professor de geografia que queria levar pra casa o seu cigarro. Pelo menos o trabalho não era longe, dava pra ir andando, não precisava pegar a bosta do ônibus lotado, cheio de gente falando merda. Animado com o sol foi de bicicleta, na velocidade ideal de um cruzeiro - nem tão devagar como a caminhada e nem tão rápido como um carro - o bastante pra perceber o seu redor e não enjoar dele. O que incomodava ele no trabalho era que a sala dele era compartilhada com mais umas seis pessoas e todo mundo era unânime em concordar no que era contra a sua preferência de ambiente: quando tava quente, fechavam tudo e colocavam o ar condicionado no máximo, tiravam uns agasalhos da mochila e se emperequetavam todos lá dentro da caixa, com aquele ar seco, frio e fedido em volta dele e lá fora um puta solzão lindo, batendo nas folhas das árvores e refletindo aquele verde fresco e vivo, nem sentia muito frio, o desagradável era aquele ar morto, isolado; quando tava frio eles queriam tudo fechado também, sempre tava tudo fechado, todo mundo de agasalho e gente espirrando. Por ele ficava tudo sempre aberto, tá com calor vai com pouca roupa! Ficava feliz que no trabalho deixavam ele entrar de bermuda. O sonho era ir de chinelo. "Tá com frio leva umas jaqueta pesada, toma chá, sabe lá o quê". Nesse dia de sol com frio foi uma mistura boa. Todo mundo sentado lá de frente do computador. Depois de sentar e começar a fazer o que tinha pra fazer é que reparou que tava fedendo a mijo. Na adolescência ficava incomodado com fedor de suor e mijo, quando sentia logo achava que era ele mesmo quem fedia. Uma vez na escola evitou todas as pessoas e não conversou nada com ninguém porque tinha vindo correndo de baixo de sol e tinha esquecido de passar desodorante, mas depois quando chegou em casa se cheirou todo e viu que nem tava fedido, era noia. Mas nesse dia o fedor de mijo tava muito forte. Perdeu a concentração do trabalho. A urina seca na bermuda exalava longe. Ficou receoso quando um colega veio pedir opinião sobre uma tabela. Desconversou e foi pra fora. Levou uns livros pra calçada e sentou no chão debaixo do sol pra ver se o fedor passava, ou pelo menos se num lugar aberto sentia menos aquela ureia azeda. Tinha uma reunião com o chefe em menos de uma hora. Dava pra ir em casa trocar de roupa, mas achou que ia ser muita noia. Foi mijado mesmo. O chefe nem reparou, ou se reparou disfarçou bem. Depois do trabalho foi jogar bola, com a mesma roupa que tava. Jogou bem e esqueceu do mijo. Na hora de ir embora se aliviou quando percebeu que o fedor de suor já tava mais forte que o fedor do mijo. Cheiro de suor é muito mais tolerável do que de mijo. "O suor próprio tem cheiro de você mesmo, da pra aturar. O tenso é o cheiro do mijo, que de todo mundo é igual, azedo já". Na verdade ele nem ligava mais pra quem ia sentir o fedor, não tava nem aí pra nada mesmo. O foda era ele mesmo ficar aturando aquele azedo. "De todos os sentidos o olfato se destaca em perceber o invisível, o atômico". O elementar e volátil fedor de tudo.

IX


Parto de um ponto de partida num ponto pitoresco, primeiro passo, penso primeiro, um parto... pauta no papel, pincel pelado, que pecado. A própria palavra, pena, que prévia primordial e pálida. Pro pasto de pétalas, do poço da pia ao pano de pratos, preciso! Pensando... partir pra perto, precisa? Perturbado e pensante, pacato primata, possesso, pirado. Paz presente. Parto do ponto, parado, pensando. Pronto!

VIII


No fundo quem tem dois se esgota em um só no avesso do complexo que é adverso e inacabado, porta aberta pro engano e pista de decolagem do inseguro. Entra no próprio turbilhão de pensamentos e arranca do espelho o defeito do outro, olha pra dentro do buraco que mais que tudo e antes de nada não cabe nesse céu, nem em outro céu, nem em todos os céus juntos, nem num tempo possível. E o que se espreguiça numa manhã tem na noite um ensaio do inútil, do verme estragado pendurado na orelha, pesando na cabeça e no ombro do aleijado as dores do anfitrião. E quem morde o próprio nariz entra no circuito de vez, e a perplexidade da percepção se enrola no imbróglio da mistificação e nem mais a consciência escapa da armadilha do misterioso e se ancora na adulação do inexplicável. Quem se esgota no fundo se acha em muitos. O que é leviano deixa sua cicatriz, no oposto da virtude, consagrado refúgio da dor, templo de sofrer.

tv


(  ) masturbação minha é televisão
(  ) minha televisão é masturbação
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