Comecei a escrever poemas depois de me separar de mulher que acreditava que seria minha companheira última, e que de fato foi.
Numa idade que já não tinha muita expectativa do que o futuro me traria, confesso que me acomodei. Busquei nas minhas fantasias uma forma mais extravagante de viver, embora parecesse, de fora, completamente tediosa.
Passava dias inteiros - certa vez uma semana - dentro de minha casa debruçado sobre poemas imensos que contavam histórias, quase sempre sem rimas, e com conteúdos sombrios, codificados, que só minha própria ótica era capaz de decifrar. Muitos deles guardei, outros queimei.
Já nesse ponto da vida não tinha o luxo de ter amigos. O mais perto disso era a senhora do mercado na rua de minha casa e o vendedor de cigarros da esquina. A verdade é que não sei se em toda vida cheguei a conhecer a amizade. Companheiros sim, tive alguns, mas que se uniam a mim por meio de outro pretexto e cujos contatos se dissipavam assim que tal circunstância não existisse mais. Assim que não havia muita gente a quem mostrar o que escrevia, e nem sabia se queria, provavelmente não.
Uma vez acabei esquecendo no mercado umas folhas que andava rabiscando um esboço, o poema contava por frases secas a rotina de um homem que cavava um túnel sem saber porquê. Na outra semana quando voltei ao mercado a senhora - nunca descobri seu nome - me entregou junto com o troco o chumaço de folhas. Fiquei um pouco ansioso, até curioso. "Será que ela leu?". Não perguntei, achei que ficar sem resposta era melhor para minha cabeça.
Por alguns dias balanceei o que estava fazendo. Valia a pena mostrar pros outros o que escrevia? Eu mesmo me afadigava com alguns dos grandes poemas, e mais que isso, eu escrevia era pra mim mesmo, pra me entreter, pra me hipnotizar.
A questão era que o acontecimento do mercado me desnorteou e a dúvida aberta naquela tarde se infeccionou em minha consciência. Comecei a fumar muito e a ficar extremamente inquieto dentro da casa. Lembro dos esboços daquela época, escritos numa caligrafia horripilante, em folhas amassadas em que escrevia enquanto caminhava aleatoriamente pela sala. Comecei a odiar o que escrevia. Culpei a caneta. Testei o lápis e até um pincel por um tempo, mas tudo me caía mal. Decidi que depois de mais de um ano nessa vida absurda de fantasiar e não viver deveria ir ver o oceano, sem papel, sem escrever. Não podia ter feito pior.
Elegi uma das praias largas da Bahia e me hospedei em um cabana ao lado do mar. Passei alguns dias em paz, os últimos que me recordo, via o sol nascer e até interagia com as poucas pessoas que passavam pela praia. Uma noite percebi que a Lua estava pra nascer, desci até a areia e sentei-me nela, sentindo o vento forte e os respingos do mar na cara. Ali vinha ela, minguando, bem amarela. Um medo tímido mas prudente se apoderou de mim quando ela toda já se via por cima do horizonte. Por trás do som violento do mar eu escutava um sibilo grave e articulado que reverberava em minha cabeça. Era Ela. A Lua estava me amaldiçoando, hoje eu entendo tudo. Voltei à cabana em passos rápidos e inseguros. Fui dormir um pouco assustado, inquieto.
Pela manhã a lua ainda visível não falava nada e a noite anterior me parecia um pesadelo. Fui caminhar um pouco, sentir o sol e a areia. Nessa noite me embebedei pela primeira vez em anos. Nos dias que seguiram comecei a estudar a consistência da areia nas diferentes alturas da praia. Me agradava a parte úmida, em que o pé afundava e não grudava na sola.
O primeiro dia do final da minha história começou como os outros. Vi o sol nascer e caminhei pela praia que estava enorme pela maré baixa daquela manhã. Estava com a mente vazia, em estado de contemplação e descompromissadamente risquei com os dedos a areia úmida aos meus pés. Estava a semanas sem escrever, e o que saiu foi todo espontaneidade, de um fundo que não controlava e tampouco conhecia. Os dois versos que saíram foram os melhores e mais simples que já escrevi, e se bem me lembro perfeitamente deles, tenho medo de repeti-los e percebo hoje que foram a inauguração da minha ruína.
Sou, irremediavelmente, produto do que não controlo
Serei, sempre e unicamente, momento e passado
Depois de escrever me levantei, caminhei talvez quilômetros para o norte, tirei toda minha roupa, que era pouca, e mergulhei no mar. Horas depois voltei e lá estava o poema impresso na areia, e embora tivesse pensado naqueles versos todo o tempo, era diferente vê-los ali na areia, como se fossem vivos. Pensei se não poderia modificá-los, mas percebi que não, não tinha esse direito. O poema agora era da praia.
Marquei com um tronco a altura da praia onde estava escrito o poema e fui para a cabana. Passei o dia distraído e desconfiado e logo cedo adormeci. A primeira coisa que fiz quando me despertei foi pensar nos versos. Uma onda escura passou pelos meus pensamentos. Era noite e saí da cabana. O frio da Lua me abateu ao ver a maré alta e violenta. Caminhei, e enquanto caminhava me dava conta do inevitável que era tudo aquilo e de como eu era uma ponta infeliz e necessária de uma grande estrutura de ironias. Não havia dúvidas de que o mar crescera muito além do ponto onde estava o poema, mas mesmo assim caminhei até o tronco que deixara. Ao chegar o sol já nascia. Revolvendo-se em inúmeras ondas viajava agora a areia que era poema.
Repeti mentalmente os dois versos e não soube dizer se era eu quem os tinha escrito ou se era o poema que se escrevia. Se por uma lado era tão óbvio, por alguma frente vulnerável da minha consciência esse processo se arrastou e violou minha estrutura, me deprimiu, ainda que também me desafiou.
Sentei nos barrancos de areia seca e esperei por horas que a maré baixasse. Enquanto esperava sentia um vazio tomando conta de mim, algo assim como uma perda total de controle. Já era de tarde quando o mar estava bem recuado e caminhei até a profundidade do poema, já sabia com minhas razões que não havia chance das palavras seguirem impressas, mas tinha no fundo da mente a esperança de que tinha produzido algo imortal. Uma areia plana me recebeu por todos os lados. O poema estava morto. Sentia-me triste, e a areia úmida aos meus pés me conformava. Não tinha a coragem de escrevê-los de novo. Tomei um banho de mar, e enquanto saía da água tive ideias, inevitavelmente imprimi-las na areia. Desses outros versos já não me lembro, porque de alguma maneira o canal superior tinha se fechado, e o poema que saía agora eram daquelas velhas longas histórias, complicadas e indecifráveis. As minhas histórias, que eu detestava.
Ao terminar o poema voltei para a cabana sem ao menos lê-lo, sabia que odiaria, queria somente tirá-lo de mim, arrancar da minha consciência aqueles versos absurdos que bloqueavam minha vida. Queria purificar-me. Abandonei o poema ao mar e sabia que assim matava-o.
Dia após dia volto à areia e escrevo meus poemas, cada vez mais longos e cada vez mais absurdos. Escrevo para esquecê-los. Escrevo-os para matá-los. Mato-os para viver. Como um infeliz que duvida de si mesmo e sacrifica suas próprias estruturas mentais para tentar adaptar-se numa realidade impossível eu caio na areia com minhas palavras esperando que um dia finalmente cesse esse fluxo alucinante que transborda minha mente para que então eu encontre a paz.
A questão era que o acontecimento do mercado me desnorteou e a dúvida aberta naquela tarde se infeccionou em minha consciência. Comecei a fumar muito e a ficar extremamente inquieto dentro da casa. Lembro dos esboços daquela época, escritos numa caligrafia horripilante, em folhas amassadas em que escrevia enquanto caminhava aleatoriamente pela sala. Comecei a odiar o que escrevia. Culpei a caneta. Testei o lápis e até um pincel por um tempo, mas tudo me caía mal. Decidi que depois de mais de um ano nessa vida absurda de fantasiar e não viver deveria ir ver o oceano, sem papel, sem escrever. Não podia ter feito pior.
Elegi uma das praias largas da Bahia e me hospedei em um cabana ao lado do mar. Passei alguns dias em paz, os últimos que me recordo, via o sol nascer e até interagia com as poucas pessoas que passavam pela praia. Uma noite percebi que a Lua estava pra nascer, desci até a areia e sentei-me nela, sentindo o vento forte e os respingos do mar na cara. Ali vinha ela, minguando, bem amarela. Um medo tímido mas prudente se apoderou de mim quando ela toda já se via por cima do horizonte. Por trás do som violento do mar eu escutava um sibilo grave e articulado que reverberava em minha cabeça. Era Ela. A Lua estava me amaldiçoando, hoje eu entendo tudo. Voltei à cabana em passos rápidos e inseguros. Fui dormir um pouco assustado, inquieto.
Pela manhã a lua ainda visível não falava nada e a noite anterior me parecia um pesadelo. Fui caminhar um pouco, sentir o sol e a areia. Nessa noite me embebedei pela primeira vez em anos. Nos dias que seguiram comecei a estudar a consistência da areia nas diferentes alturas da praia. Me agradava a parte úmida, em que o pé afundava e não grudava na sola.
O primeiro dia do final da minha história começou como os outros. Vi o sol nascer e caminhei pela praia que estava enorme pela maré baixa daquela manhã. Estava com a mente vazia, em estado de contemplação e descompromissadamente risquei com os dedos a areia úmida aos meus pés. Estava a semanas sem escrever, e o que saiu foi todo espontaneidade, de um fundo que não controlava e tampouco conhecia. Os dois versos que saíram foram os melhores e mais simples que já escrevi, e se bem me lembro perfeitamente deles, tenho medo de repeti-los e percebo hoje que foram a inauguração da minha ruína.
Sou, irremediavelmente, produto do que não controlo
Serei, sempre e unicamente, momento e passado
Depois de escrever me levantei, caminhei talvez quilômetros para o norte, tirei toda minha roupa, que era pouca, e mergulhei no mar. Horas depois voltei e lá estava o poema impresso na areia, e embora tivesse pensado naqueles versos todo o tempo, era diferente vê-los ali na areia, como se fossem vivos. Pensei se não poderia modificá-los, mas percebi que não, não tinha esse direito. O poema agora era da praia.
Marquei com um tronco a altura da praia onde estava escrito o poema e fui para a cabana. Passei o dia distraído e desconfiado e logo cedo adormeci. A primeira coisa que fiz quando me despertei foi pensar nos versos. Uma onda escura passou pelos meus pensamentos. Era noite e saí da cabana. O frio da Lua me abateu ao ver a maré alta e violenta. Caminhei, e enquanto caminhava me dava conta do inevitável que era tudo aquilo e de como eu era uma ponta infeliz e necessária de uma grande estrutura de ironias. Não havia dúvidas de que o mar crescera muito além do ponto onde estava o poema, mas mesmo assim caminhei até o tronco que deixara. Ao chegar o sol já nascia. Revolvendo-se em inúmeras ondas viajava agora a areia que era poema.
Repeti mentalmente os dois versos e não soube dizer se era eu quem os tinha escrito ou se era o poema que se escrevia. Se por uma lado era tão óbvio, por alguma frente vulnerável da minha consciência esse processo se arrastou e violou minha estrutura, me deprimiu, ainda que também me desafiou.
Sentei nos barrancos de areia seca e esperei por horas que a maré baixasse. Enquanto esperava sentia um vazio tomando conta de mim, algo assim como uma perda total de controle. Já era de tarde quando o mar estava bem recuado e caminhei até a profundidade do poema, já sabia com minhas razões que não havia chance das palavras seguirem impressas, mas tinha no fundo da mente a esperança de que tinha produzido algo imortal. Uma areia plana me recebeu por todos os lados. O poema estava morto. Sentia-me triste, e a areia úmida aos meus pés me conformava. Não tinha a coragem de escrevê-los de novo. Tomei um banho de mar, e enquanto saía da água tive ideias, inevitavelmente imprimi-las na areia. Desses outros versos já não me lembro, porque de alguma maneira o canal superior tinha se fechado, e o poema que saía agora eram daquelas velhas longas histórias, complicadas e indecifráveis. As minhas histórias, que eu detestava.
Ao terminar o poema voltei para a cabana sem ao menos lê-lo, sabia que odiaria, queria somente tirá-lo de mim, arrancar da minha consciência aqueles versos absurdos que bloqueavam minha vida. Queria purificar-me. Abandonei o poema ao mar e sabia que assim matava-o.
Dia após dia volto à areia e escrevo meus poemas, cada vez mais longos e cada vez mais absurdos. Escrevo para esquecê-los. Escrevo-os para matá-los. Mato-os para viver. Como um infeliz que duvida de si mesmo e sacrifica suas próprias estruturas mentais para tentar adaptar-se numa realidade impossível eu caio na areia com minhas palavras esperando que um dia finalmente cesse esse fluxo alucinante que transborda minha mente para que então eu encontre a paz.