Uma história que encontrei embaixo de uma pedra

Lentamente migrei-me de um sonho para o despertar, recebendo de forma progressiva a consciência suavemente domada. Levantei-me da cama calmamente e deliciei-me com o silêncio da rua.
Decidi permanecer de jejum para manter a mente ativa e sob controle. Encostei-me na janela do quarto para observar o céu. As nuvens tinham formatos pitorescos e nítidos e o azul no alto era claro e pacífico. Abri a janela. A temperatura do ar me pareceu agradável e uma brisa fresca corria por debaixo da sombra de inúmeras árvores.
Irracionalmente, e de maneira iquestionável, decidi ausentar-me das obrigações da rotina e do trabalho, e ao invés, caminhar ao abrigo das sombras até um grande lago não muito distante da minha casa. Vesti-me e saí em silêncio.
No caminho para o lago, já na saída da cidade, um homem velho acompanhou-me com o olhar desde longe. Estava sentado no chão, vestido em roupas simples e surradas, de pele preta e cabelo e barbas brancas. Quando finalmente cruzei-me com ele, mostrou-me um sinal com a mão e deti-me. O velho levantou-se e aproximou-se de mim. Seu olhar era sincero e intenso e seus movimentos suaves e precisos. Olhou-me profundamente nos olhos e falou-me em uma voz firme, grave e gentil:
“ Você irá agora ao lago, em busca de paz. No meio do caminho encontrará uma casa de pedra antiga que nunca antes havia notado. Terá vontade de entrar, mas antes anotará, com os papéis e lápis que te darei, toda a história desse dia para certificar-se da própria existência, e também da minha. Terminado o relato deixará os papéis ao lado do caminho, embaixo de uma pedra, e caminhará em direção à casa.
Assim que entrar no recinto irá abater-lhe atemporalmente a irreversibilidade dos passos que se seguirão. Uma voz mansa e firme te conduzirá a um assento que não será nem rocha nem madeira e acomodará suas dores e alegrias numa posição confortável mas que não será simples. O pouco que ainda verá será induzido a deixá-lo, fechando sobre a cara olhos já distantes.
                Uma voz te alcançará num idioma que não reconhecerá e que não poderá reproduzir e no entanto compreenderá cada sinal que receberem suas percepções, essas já ampliadas, embaralhadas e irreconhecíveis.
                Ora sons te amaciarão os ouvidos, primeiro um, depois outro, logo perceberá no silêncio o anti-som e que esse nasce de todos os pontos ainda que de nenhum em particular. Uma tonada da voz te clareará por inteiro a visão de um rio. Suas águas barrentas e inesgotáveis serpentearão os pés de montanhas, que sangrarão sua neve e somarão-se ao grande rio. Será dado a você o tempo necessário para que explore e descubra as sinuâncias e as peculiariedades de tal conjugação, mas ao realizar uma curva inevitável, indispensável ao seu caminho, uma montanha magnânima e coroada de gelo e nuvens te fará perder o equilíbrio e uma sensação que correrá transversalmente sobre os diferentes níveis da sua realidade fulminarão no ímpeto irrefreável de abrir os olhos, que fará do rio e do vale escuridão e vazio. Terá ânimo de falar, como para queixar-se ou explicar-se, mas será antecipado pela voz que lhe conduz que qualquer manifestação daquela espécie será insuficiente, inapropriada e indiferente. Uma torrente imediata te fará esquecer o caso, e você se perguntará se sequer aquilo teria acontecido.
                Novamente fechará os olhos e da escuridão ressurgirá o rio, agora caudalento e rompendo-se em rochas imensas plantadas em seu caminho tortuoso. Instintivamente perceberá que o rio é vivo. Compreenderá que a voz que lhe alcança é o som de tudo somado e interferido no tempo e no espaço, que serão indistinguíveis, e interpretará a voz naquele momento como violenta e agitada, ao menos de início. Você se sentirá confuso e amedontrado, mas as condições e as ferramentas necessárias para o seu auto-controle estarão sob o seu poder, e calma, luz e paz sobresaírão após os desafios que te forem impostos. Ultrapassadas essas circunstâncias você entrará num domínio mais profundo, onde poderá visualizar o vazio do medo e de todas as coisas.
         Perceber uma visão de olhos fechados lhe sustentará o ânimo de ir mais além. De súbito compreenderá que deve unir-se ao rio, afinal o rio é você. Encarará absolutamente aquela realidade e saltará com firmeza para dentro do rio que será barrento e incontrolável, numa corredeira que se aprofundará em uma grande boca de pedra, cavada funda entre o emanharado de montanhas.
                Uma vez que livrar-se do medo e unir-se ao rio e todo o ao redor poderá, finalmente, libertar-se definitivamente de todos os sentidos que íão até então moldurando de maneira fantástica, mas ainda assim limitada, a sua experiência. Livre, você flutuará fora do tempo e do espaço, e será puro ser, sem saber como será então. Você se dissolverá numa existência elementar, sem barreiras físicas e corpóreas, e será ali eterno e infinito.”