Sobre Ramón e o Poço


Três luas se passaram e quando na primeira pia pôde lavar a boca, cuspiu sangue. Sobre o bronze, esculturas. Dividida em retângulos, formava um dodecágono, a pia. Das lembranças e da herança do que foi, cingiam-lhe no rosto lágrimas de suor. No corpo ascendiam-lhe vibrações instáveis, na mente uma areia branca.
Tirou das vestes o seu corpo. Submergiu sob líquidos bafejantes, estranhos. No despertar da latência do sonho, catapultou-se no desejo de deitar-se na sombra, e em baixo de um verde vivo largou mão de resistir o que lhe puxa e cedeu ao chão carne e osso untado a sangue.
Viram carregarem-lhe formigas sobre a trilha, houve quem notasse uma ou outra raiz de árvore que abraçava-o pela cintura. Mas nos mais tardar de três translações sobreveio a nanição. Retirou-se com pressa. Sob esculturas, bronze. Queimando-lhe o pé. Vigor de concreto.
Quando voltou a um vilarejo que fora conhecido não tardaram a dizer, "Fez por merecer". E ninguém sabia por onde tinha posto os pés o indigente. Perguntavam-no, "Que cicatriz é essa que leva no olho?". Ao que respondia com um chute no chão e um sussurro indecifrável.
Num retorno do fantástico, descobriu-se no interior de um poço retangular, largo. Numa treva sólida cusparadas de luz jorravam um som distante, atrasado. Tremores nas paredes de pedra, brilhantes na luz, gelada e úmida no escuro. Na cabeça um inclinar temoroso sobre o inconcebível. O tempo da luz e do som diminuía, quando pingos primeiros borbulharam no fundo do poço. Dos ecos faziam-se muitos. À luz gelada que serpenteava o ar, gotas caíam como diamantes, pesadas. Do lado de fora, na superfície, com o som de milhares de passos ao redor, estalos e chacoalhadas de galhos.
Até que a luz e som se tocaram no tempo, luz pálida violeta, som estridente e frenético. Da boca do poço gotas que doíam-lhe a cabeça, água rápida. Os joelhos, antes secos já tremiam por dentro da água fria do céu. Olhando para cima as gotas entravam-lhe nos olhos e as rajas de luz por dentro do cérebro faziam vir à retina padrões concêntricos, rodopiantes. O que antes nasceu temor amadureceu pavor. Na pedra lisa os dedos perdidos nada conseguiam. Já na barriga a água era negra, e quando luz chegava, superfície áspera era, como que gotas indo e vindo por essa interface acidentada.
Chegou a escorregar no fundo escorregadio e por um pequeno período o som se abafou e as luzes embora onipresentes se embassaram. De volta ao ar um tremor da parede fez cair uma pedra da superfície. E o que era pavor apodreceu derrota, e no fundo vieram somar lágrimas à guilhotina que vinha. Primeiro de desespero, depois de esperança inocente, "Talvez venha tanta coisa que eu me escapo pelo topo". Longo tempo passou, ou talvez instantes, a luz rasgada do céu fizera-o cego, ou confuso, que de olho fechado via manchas coloridas, banais, e com pálpebras retraídas via só o que tentava imaginar. Do fundo, que agora era nuvens e lágrimas alcançava-o até os ombros o domínio submerso. Depois nunca mais parou de chover, diminuiu e continuou diminuindo por todo o tempo sem que no entanto acabasse a água que caía. Isolado, conclui que não deve chorar, que talvez o acúmulo do que saísse chegaria ao seu nariz e ao seu pulmão e não tardava já estava no olho de novo.
Num estado surreal e já longe das faculdades do bom senso percebeu que por dias a água caía e do ombro não passava a interface flutuante da morte afogada. Não ousava submergir a cabeça por um momento sequer, sonhou acordado e se viu num tabuleiro de xadrez. Estava na linha dos peões, ao lado de outras figuras tão miseráveis quanto ele, à frente, muito longe um exército sombreado, rodeado de torres octogonais e ruídos cadavéricos. Ao acordar, era o que imaginava ele, que agora acordava, como se antes tivesse adormecido, pois luz nenhuma arranhava o céu agora e o negro era o tom de tudo, ao acordar desistiu do mundo e resolveu baixar a cabeça. Não tinha fome nem medo mais. Abriu os olhos no útero preto que o contia e viu como que um daqueles diamantes que caíram anos atrás do céu, agora subindo do fundo, de uma distância intensamente perturbadora, e com o que restava de ânimo mergulhou na direção, esticando os braços e a esperança. Não alcançou e o fôlego lhe faltou, endireitou o corpo no que achou que era o eixo do mundo e tentou ficar de pé. Fosse o que foi, não alcançou. Nadou em vão para cima, para o lado. Nada mais firme que água ao redor. Voltou a cabeça pro diamante do fundo e se empurrou para ali, já com as lágrimas de volta ao pulmão, pesadas. Sentiu o peso do mundo cruzando seu corpo, a mão esticada num último desespero quando o que era um diamante, seu corpo atravessando um limiar inusitado, mostrou-se a boca do poço, acesa com a luz do sol, e os pés que antes sacudiam à esmo firmaram-se num lodo grosso.
De novo tinha a água nos ombros, de novo só, no poço. Ao longe o ronco da tempestade que se não o matara, o fez louco. Por mais incontáveis translações choveu, e o máximo que podia, ainda sob o preço de um afogamento, era alternar entre os dois poços a que era eternamente prisioneiro.